terça-feira, fevereiro 22, 2005

Manual do Eleitor Indigente

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A maioria absoluta conseguida anteontem pelo Partido Socialista é muito menos absoluta que aquilo que dela se pode julgar à partida. Há nela uma partícula de complexidade e outra de resiliência que se explicam ora pela inépcia dos portugueses na hora do voto, ora pela ausência afectiva de soluções credíveis. Quando assim acontece, a tendência do voto envereda por uma uniformização espiralada, conivente com uma brusca homogeneização do voto num único sentido, o da justiça cega e castigadora.

O escrutínio do passado domingo repete, nesse sentido, escrutínios passados, ainda que com consequências mais nefastas, desta feita para a trupe de Santana Lopes: dado o carácter dúbio das políticas consignadas pela coligação governamental nos últimos meses, dado o deficit de confiança do eleitorado ora no sistema, ora nos actores políticos, o acto eleitoral, tal qual os autos do Santo Ofício ou as fogueiras da Inquisição, serviu menos para eleger do que para castigar.

Mas castigar o que, afinal? A julgar pela complacência e aguerrida superficialidade da maior parte dos portugueses (que vivem bem com a miséria dos seus semelhantes, com o funesto circo de favores e compadrio, com a corrupção e a falta de seriedade) Santana Lopes poderá ter perdido as eleições à custa do fascínio estúpido pelo poder que sempre o caracterizou, no exacto momento em que procurou moldar e metamorfosear o preceito da liberdade em conivência com a sua própria visão da democracia, uma democracia desassombrada de nuvens e de abutres.

Marinados que estamos todos na prosaica mitologia do 25 de Abril e na serena majestade da Revolução dos Cravos, a ideia de liberdade - tida, nestes mesmos termos, de ideia abstracta e nada objectiva - é uma ideia cara aos portugueses: os portugueses perdoam tudo (perdoam os mais baixos índices salariais da Europa, perdoam a má fé patronal, os abusos de confiança e a ineficácia do ensino superior) mas não toleram que se ponha em causa a laica santidade inerente ao conceito de liberdade, ainda que não saibam bem o que tal significa, se é apenas a ausência de uma polícia política, se é a possibilidade de um comentador poder dizer mal abertamente do líder do seu próprio partido, se é a isenção política dos meios de comunicação social controlados pelo Estado ou o direito a reivindicar novas fronteiras para a moral ou a legalidade.

A nova - e também primeira - maioria absoluta socialista tem assim um certo condão de falibilidade. Tenro na liderança do Partido Socialista, José Sócrates não teve nem o tempo, nem a habilidade, nem a oportunidade factual para demonstrar se tem estofo e inteligência para liderar alguma coisa (o seu próprio partido inclusive). Não protagonizou uma campanha resoluta e transparente, nem ofereceu aos portugueses garantias credíveis de que o rumo do país e do amor próprio dos portugueses poderá ser nos próximos quatro anos diferente e enriquecedor.

Sócrates limitou-se a recolher e a processar em votos o desagravo e a falta de confiança dos portugueses, da mesma forma que em 2002 Durão Barroso venceu os socialistas tendo por base o mesmo pressuposto, o do voto castigador e cego, que premeia não os projectos de futuro, mas penaliza, sim, as prestações do passado.

Se quem vos escreve estas linhas fosse um escritor de latitudes sul-americanas, a defesa de que o único voto castigador que redime é aquele professado pelas revoluções e pelas armas seria feita sem escrúpulos, nem consciência, uma vez que o voto que castiga, para toda e qualquer instância, não é um voto de fé, mas sim e quase sempre um voto de ódio.

Sócrates, crónico vencedor antecipado do escrutínio de domingo passado dispõe de todas as condições para governar durante os próximos quatro anos com conforto e profícua margem de manobra, mas se não for capaz de incutir seriedade e credibilidade às instâncias dirigentes, daqui a quatro anos, e disso não tenho dúvidas, a vassourada inócua (e pouco eficiente, diga-se) do voto castigador varre-o com a mesma naturalidade com que relegou agora Santana Lopes para um limbo político manifestamente devastador.

Se a um novo governo se fizerem corresponder costumes antigos, mais vale mesmo que Sócrates (ironia, ter nome de filósofo que bem falava) não chegue sequer a ser empossado e que, no entretanto, caia do céu uma invasão de Espanha ou um Marquês de Pombal. Até porque para Sócrates o desafio da maioria absoluta é duplo e tão certo quanto a impossibilidade da parede ou o gume da espada: ou o governo PS garante ao país a estabilidade desejada e o crescimento necessário ou daqui a quatro anos - como os portugueses comungam de horizontes curtos e flexíveis - um novo acto eleitoral de vingança se prepara, caindo em definitivo o país num vazio assustador de causas e soluções. Assim por assim, ruim por ruim, qualquer dia porque não votar... em mim?

4 Comments:

At 12:34 da tarde, Blogger Braveman said...

Óptimo texto, óptima visão e raciocinio.
A espiral do silêncio de noelle newmann explica muita coisa (perdoem-me se escrevi mal o nome mas estou a ficar taralhouco)

 
At 3:25 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Muito giro!!

Já agora onde é que arranjaste a tira do Laerte? Havia lá mais?

Desde já, Thx.

Eu

 
At 2:40 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Então demora pr responderes???

Eu

 
At 8:22 da tarde, Blogger Marco Mendes Velho said...

Digitalizei a partir de uma revista....

 

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