sexta-feira, março 04, 2005

Desafios de Estilo

Tenho na mão o "Livro de Estilo" do "Público". Segunda edição, a resfolegar de nova, coordenada por António Granado, actualizada grão-a-grão por uma mão cheia de nomes conhecidos - Clara Barata, José Vítor Malheiros, José Bento Amaro, Teresa Firmino - bons profissionais e testemunhos sólidos de bom jornalismo, disso não haja dúvida.
Eu, que aspiro a tal solidez, tenho neste livro uma bíblia, um cruzador imenso que navega por todas as coisas que o bom jornalista deve ser e possuir, um sentimento ético e o conhecimento das coisas e das causas, de Sucre, capital constitucional da Bolívia, da grafia de paul e de Raul (ambos libertos e não acentuados), do significado sangrento de "ustasha" ou do lugar certo de Mandalay, Birmânia.
A resfolegar de nova, a segunda edição do "Livro de Estilo" do "Público" é uma resposta segura a quase todas as dúvidas do jornalista: éticas ou linguísticas, gráficas ou substânciais. Está lá a alma do negócio, transparente e lúcida, os segredos e os reparos formais a serem feitos e o rigor e a esquadria (certos neste domínio), passíveis quase de quantificação, necessários para que se erradique o erro e a parcialidade das páginas dos jornais. Em muito estilizar é objectivar.
Livro de Estilo, segunda edição. Está lá a alma, mas não está a moral do negócio, que um livro de estilo discute questões formais, nunca a estrutura e o meio.
Da estrutura e do meio ninguém quer falar. Nem os livros de estilo, nem os jornais, nem os jornalistas de carteira e coluna semanal, nem as universidades, nem os governantes, nem... sei lá..
Que importa, pois então, navegar contra a maré ou mijar contra o vento?
Importa, por uma unica razão. Razão que se traveste com um sem fim de nomes e que se confunde, até, com a ética que transborda dos livros de estilo e dos códigos deontológicos mas que tem para este efeito um nome maior, sonoro e válido: dignidade profissional.
"Livro de Estilo", página 19. Ética e Deontologia. Lá do alto, nas grandes redacções do país, acredito que seja fácil absorver com insofismável devoção os preceitos do capítulo e aceitar que é assim que se deve agir, daí que exista um único sentido possível para a observância dos aspectos éticos: a obediência.
Fora delas, o mundo é cão e não há catecismo que mais valha. E se tal acontece, acontece mais porque o meio o impõe do que por vontade expressa do jornalista ou do aspirante a jornalista, caso exista quem considere que uma licenciatura não justifica em termos técnicos uma tal qualificação. Em casos que tais, pode-se dizer que o jornalista é, na prática, um pecador consciente: sabe que há uma margem de pecado palpável no que faz, um não sei que de insidioso e anti-ético mas, qualquer que seja a opção que escolha, sobra-lhe em condenação o que falta em dignidade profissional. Ou peca ou morre.
A dignidade profissional devia funcionar no ambito do jornalismo como uma espada de dois gumes. Sob o aval de vassalagem da Comissão da Carteira Profissional não funciona. A referida instituição (ou será organização?) impõe o exercicio continuado da profissão para que o título seja garantido. No entendimento de classe da CCPJ, o aspirante a jornalista que tenha cursado comunicação social ou jornalismo numa universidade ou escola superior é pouco mais que carne para canhão, um peão no imenso xadrez da falta de pudor empresarial e de consciência ética do patronato: antes de conseguir "comprar" o pequeno cartão de plástico duro (demodée quanto baste) o licenciado em jornalismo ( e só por ai jornalista com potencial) tem que comer o pão que o diabo amassou para que tenha direito a um salário que só não envergonha políticos, comentadores, jornalistas de carteira e doutores universitários porque se trata de Portugal e de Portugal se tratando uns e outros bebem da mesma essência: da cumplicidade e da falta de seriedade.
Até no uso da língua se absorve uma certa repressão patológica quando o que está em questão são os ditos aspirantes a jornalistas; em vez de jornalistas por direito próprio, os formados e os formandos em jornalismo e comunicação são aos olhos do sector "pãezinhos de fornada": findo um novo ano lectivo, uma nova "fornada" se condena aos recibos verdes, ao trabalho não declarado, às colaborações dúbias, a uma forma não explorada de escravatura intelectual que condena o país a um ciclo de retornos eternos àquilo que sempre foi nele característico, a arte vergonhosa de desperdiçar mais valias.